Manoel Cipriano 08/12/2020
Acompanhado o debate em torno do assassinato de Marielle, ocorrido no dia 14 de março/2018, observa-se que este fato tem suscitado algumas hipóteses acerca de sua causa. Pergunta-se: Marielle teria sido assassinada por ser mulher, negra, LBGT e da periferia? Marielle teria sido assassinada por ser mulher, negra, LBGT, da periferia e defender os direitos humanos? Marielle teria sido assassinada por ser mulher, negra, LBGT, da periferia, defender direitos humanos e ser de esquerda? E por aí se vai com as contas de um rosário de suposições e conjecturas que parece não ter fim. Em meio a esta discussão, vão aqui, algumas considerações.
Não restam dúvidas de que a conjuntura econômica, social e política demonstra a existência de uma sociedade na qual ser pobre, da periferia, mulher, negra e LGBT, coloca a pessoa numa condição de marginalizada e sujeita aos mais variados tipos de preconceitos e de exclusão social imagináveis, inclusive podendo muito bem ser alvo de um assassinato brutal inserido no dia a dia de violência urbana que grassa, de modo plausível, nas grandes cidades de Norte a Sul do País, no Rio de Janeiro inclusive.
Contudo, dúvidas também não restam, de que ser mulher, negra, da periferia, LGBT, defender a efetividade de direitos e escolher atuar na perspectiva de esquerda como forma de luta, numa sociedade que avança no conservadorismo dos costumes e na retirada de direitos e garantias individuais e sociais em curso, aprofundando, ainda mais, o abismo social entre os que tudo tem e aqueles cada que vez mais têm menos oportunidades, torna real a necessidade de fazer calar esta voz, sem quaisquer escrúpulos, numa ação orquestrada daqueles que defendem o "status quo", em que lugar de pobres, revelado e, em particular, negras e negros, deve ser limpando a sujeira de brancos e senhores, cuidando da cozinha, limpando ruas e espaços de lazer dos que mandam e comandam, sem acesso às instâncias de poder.
Neste cenário, também salta aos olhos que o espaço político institucional, em regra, é ocupado por homens, brancos, héteros e ricos, numa junção entre a concentração de riqueza e o exercício do poder político. O que se constata em qualquer imagem dos membros do legislativo municipal, estadual ou federal, assim como dos representantes do poder executivo seus "staffs", secretariados no caso de municípios e estados, ou ministros no caso do governo federal. Sobrepuja nestas instância de poder a ausência de mulheres e, menos ainda, pra não dizer inexistente, a presença de negras e negros.
Há que ser dito também que as organizações políticas de esquerda de um modo geral, o que não é diferente no caso brasileiro, embora defendam uma hipótese de construção de uma outra sociedade, reproduz a que se encontram inseridas, de modo que há níveis de desigualdades entre seus integrantes, assim como seus expoentes e representantes são, em sua maioria, homens brancos, héteros e de nível intelectual e social diferenciados.
Tanto assim é que a legislação geral determina "cotas de candidaturas" e não de cargos, para mulheres. Além do que, há organizações políticas e partidárias de esquerda, como é o caso do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que, num esforço para superar esta reprodução social em suas fileiras, adotam normas com percentuais mínimo de mulheres e negros na composição de suas instâncias. Isto, por si só, demonstra o reconhecimento que há exclusão, apesar do esforço para superar esta forma de marginalização de mulheres, negras, negros, LGBTS, pobres, analfabetos e periféricos no interior destas organizações.
Pode-se dizer, por fim, que na base do assassinato de Marielle, está a luta das mulheres, sobretudo e em particular das mulheres negras, dos LGBTQIs, dos pobres da periferia, assim com a luta contra a profunda desigualdade social, numa perspectiva classista de esquerda.
Além de ser esta uma questão de luta pela efetividade dos direitos e garantias universais, encontra-se também presente nas diretrizes programáticas e disposições estatutárias do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), partido ao qual pertencia Marielle, o qual tem compromisso com a pauta de luta por direitos e contra a profunda desigualdade social para em par com a defesa das minorias e opressões, mulheres, negras e negros, indígenas, LGBTs, assim como a diversidade, dentre outras questões identitárias, de modo que uma pauta não exclui a outra. Pautas que estão imbricadas numa mesma bandeira de luta pela afirmação de que a construção de outra sociedade é possível.
Assim sendo, pode-se dizer que o assassinato de Marielle Franco foi, nada mais nada menos, do que o incomodar aos "senhores" por ser ela, em todo o seu ser, a expressão de quem nasceu, cresceu e morreu nos becos e vielas dos morros e favelas engajada na luta diuturna como mulher, negra, LGBT, periférica, comprometida com a luta por direitos numa perspectiva política de esquerda. Então, se o objetivo dos que a assassinaram era silenciar tudo isso, produziu, pois, efeitos contrario, tendo sua morte ecoado para além do Rio de Janeiro e do Brasil, transformando sua luta numa ação universal que ficará cravada e gravada na história. Pode alguém até dizer ser que esta conclusão está um tanto quanto equivocada, meu caro leitor; porém, pelo menos, é o que se percebe a partir dos fatos cotianos; e isso é também o que se pode deduzir neste momento.
Fica aqui, então, uma contribuição para o debate em relação ao qual não se pode omitir, em vista do desafio da luta por direitos das mulheres, e, dentre estas, das mulheres negras; dos negros, dos pobres, dos que vivem na periferia e, ainda, quando, além de tudo isso, se for também nordestino, inserido politicamente numa perspectiva de esquerda no seio de uma sociedade historicamente machista, racista e excludente, governada por homens brancos e ricos.
Publicado originalmente em 19 de março de 2018.
Manoel Cipriano.
Vice-presidente do PSOL/MINAS
Bacharel em Filosofia.
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