Manoel Cipriano[1]
03/06/2023
SUMÁRIO: 1. Delimitação do tema. 2. Reforma agrária: aspectos legais. 2. Reforma agrária no Brasil: aspectos históricos. 3. Titulação de assentamentos e os desafios à continuidade na terra adquirida pelo processo da reforma agrária. 4. Considerações. 5. Referências.
1. DELIMITAÇÃO DO TEMA
A reforma agrária consiste, pois, num processo em que a ocupação, a posse e a titulação constituem alguns passos para acesso e aquisição da terra para nesta produzir e desta tirar os frutos necessários à dignidade humana, sendo também uma ação no contraponto à concentração da terra nas mãos de poucos que bem caracteriza a sociedade brasileira desde a chegada dos povos europeus no território nacional. A presente reflexão se propõe ser um olhar sobre os passos deste processo, de modo especial para a titulação de lotes dos assentamentos rurais no sentido de sinalizar para onde tende o futuro da reforma agrária. O que é feito a partir dos aspectos históricos da reforma agrária; reforma agrária: aspectos legais; ocupação, posse e titulação: caminhos para o retorno; e algumas considerações e ponderações como forma de deixar aberta para continuidade do debate.
2. REFORMA AGRÁRIA: ASPECTOS LEGAIS
A ordem jurídica constitucional ora em vigor estabelece as normas de garantia de reforma agrária, assegurando o acesso à terra fundamentando-se na função social da propriedade. Neste sentido, a distribuição da terra deve se dar em conjunto com a política agrícola, possibilitando, assim, o acesso à terra em conjunto com as condições para a produção agropecuária ou extrativista como condição para o bem estar.[2]
O que implica que, além da distribuição da terra, deve haver o oferecimento dos meios e recursos necessários para que a partilha da terra gere trabalho e renda para as famílias assentadas. Dessa forma, financiamento, maquinários, moradia, formação, e assistência técnica devem acompanhar o acesso à terra em decorrência da reforma agrária. O que se encontra regulamentado e garantido pela legislação infraconstitucional.[3]
2. REFORMA AGRÁRIA NO BRASIL: ASPECTOS HISTÓRICOS
Desde a ocupação do território brasileiro, com a chegada dos europeus e a colonização e domínio português, a grande propriedade tem sido a regra na distribuição da terra.
As capitanias hereditárias, por exemplo, foram uma maneira de destinar as terras brasileiras para as mãos de poucas pessoas, uma vez que dividiu o território em quinze (15) áreas que foram entregues pela Coroa Portuguesa aos interessados pelas terras em processo de colonização. O que se deu no período de 1534 a 1548, ainda antes do estabelecimento e início das governadorias gerais.
Seguindo esta lógica, o sistema de capitanias hereditárias se articulou por meio do regime de sesmarias, entregando grandes áreas de terra para serem exploradas, uma vez que não tinham condições de, por si mesmo, cuidar da sua capitania. Inserido nas capitanias hereditárias, o sistema de sesmarias se encontra na base da consolidação da grandes propriedades rurais como caraterística da ocupação das terras brasileiras[4].
Na linha da normatização, a legislação brasileira, desde o início vem legitimando o latifúndio, começando pela lei de terras, aprovada em 1850.[5]
Um processo que reflete na situação atual numa concentração das terras na grande propriedade.
Atualmente, apenas 0,7% das propriedades têm área superior a 2 mil hectares (20 km2), mas elas, somadas, ocupam quase 50% da zona rural brasileira. Por outro lado, 60% das propriedades não chegam a 25 hectares (0,25 km2) e, mesmo tão numerosas, só cobrem 5% do território rural. Os dados são do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).[6]
Em face de uma legislação que legitima o latifúndio, mantida, ainda, como simples fator de riqueza, outra alternativa não resta que não a ocupação das terras improdutivas, forçando a distribuição da terra e dando a esta uma função social.
A exclusão de grande parte da população brasileira do acesso à terra pôs em curso a busca por um pedaço de chão onde plantar, colher e garantir os meios de manutenção da vida no meio rural.
A partir da segunda metade do século vinte, percebe-se um aumento do movimento e da organização coletiva no sentido de pressionar, então, o poder público para a implementação da distribuição de terras como parte do processo de efetivação da reforma agrária.
Neste sentido, as romarias da terra, os debates, as manifestações coletivas, as ocupações de fazendas impulsionaram o surgimento de acampamentos, levaram aos assentamentos rurais, assim como possibilitaram a movimentos coletivos organizados no sentido de dar vazão à luta pela terra, em defesa da reforma agrária no contraponto ao grande latifúndio, de modo particular as propriedade improdutivas, mantidas como simples fator de riqueza.
A Comissão Pastoral da Terra (CPT)[7], o Movimentos dos Trabalhadores Sem Terra (MST)[8], os Sindicatos de Trabalhadores Rurais são alguns dos movimentos que se colocaram a serviços da busca pela reforma agrária, iniciando pela distribuição da terra como forma de acesso a um dos instrumentos necessários à geração de renda por meio da produção da dedicação ao extrativismo, à pecuária e, majoritariamente, à agricultura familiar.
Além da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), outros movimentos passaram a compor a organização da luta pela democratização da terra a exemplo da Frente Nacional de Luta pela Terra (FNL)[9]; do Movimento Terra Trabalho e Liberdade (MTL)[10]; o Movimento Terra Livre; Movimento pela Reforma Agrária (MPRA), dentre outros. Uns com presença ampla no âmbito do território nacional, outros regionais e outros, ainda, com menor incidência territorial; todos, porém, engajados na peleja pela reforma agrária.
A atuação destes movimentos encontra, neste momento, sendo objeto de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) no Congresso Nacional. Embora seja uma ação do legislativo destinada a investigar o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) de forma direta, indiretamente se encontram sob questionamento o conjunto das organizações que se encontram à frente da luta por reforma agrária. Embora pode-se dizer, de certa maneira, que esta investigação se apresenta como uma forma de se contrapor ao governo federal que propõe a retomada do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) como parte da estrutura administrativa.[11]
3. TITULAÇÃO DE ASSENTAMENTOS E OS DESAFIO PARA A CONTINUIDADE NA TERRA ADQUIRIDA PELO PROCESSO DA REFORMA AGRÁRIA
Vistoriada, ocupada a posse e vencida a etapa de concessão de uso da terra, em decorrência da implementação da reforma agrária, a titulação se apresenta como forma pela qual se transmite às assentadas e aos assentados o domínio definitivo da propriedade.
Observa-se, contudo, que distribuição da terra, em decorrência da reforma agrária, não tem sido conjugada com políticas públicas no sentido de garantir as condições para que assentadas e assentados possam fazer a terra produzir e desta tirar o sustento familiar, carecendo do acesso a crédito para financiamento da produção; falta equipamentos para o cuidado da terra, a exemplo de maquinários, assim como inexiste o oferecimento de formação e capacitação técnica, com o oferecimento da educação para o campo.
O processo de reconhecimento da condição de proprietário definitivo, realizado pela formalização por meio da titulação dá às assentadas e aos assentados a condição de domínio da propriedade, cabendo-lhes usar, usufruir e transmitir este direito. De igual modo, retira o incentivo público para permanecer na terra, ainda que de forma precária; o que, em decorrência desta autonomia, abre caminho para a venda dos lotes adquiridos.
Esta situação tem gerado, em alguns assentamentos, a transmissão de terras a pequenos pessoas não integradas à luta pela reforma agrária, a exemplo de pequenos empresários, pequenos comerciantes, e pequenos industriais e profissionais liberais do meio urbano, descaracterizando, assim, a organização dos assentamentos decorrentes da implementação de projetos de reforma agrária, de modo particular em relação aos assentamentos próximos ao perímetro urbano.
Neste sentido, faz-se necessária que, a continuidade dos assentamentos em que haja a titulação dos lotes seja acompanhada da implementação de políticas públicas para que a democratização da terra a realização da função social dos latifúndios improdutivos evitem o retorno de assentadas e assentados para o meio urbano, após se desfazerem de seus lotes, assim como impeça que este processo desemboque para o viver nas periferias e seus reflexos; tudo por não haver política agrícola para por em par com a distribuição da terra, desde a concessão da posse e agravada, ainda mais, pela retirada dos parcos incentivos públicos aos que adquirem o domínio definitivo de seus lotes em decorrência da titulação.
4. CONSIDERAÇÕES
Observa-se que, desde a ocupação do território brasileiro, a distribuição da terra se dá pela implementação da grande propriedade. Um processo iniciado na forma de capitanias hereditárias, fortalecido pelos regime de sesmarias e formalizado pelo sistema de regulação pela legislação nacional.
Constata-se que o ordenamento jurídico constitucional ora em vigor reconhece a reforma agrária como forma de democratização da terra e de realização da função social da propriedade. Contudo, a distribuição da terra não tem sido acompanhada de políticas públicas no sentido de possibilitar a assentadas e assentados a permanência na terra e tirar desta os frutos necessários a uma existência com dignidade no campo.
Além da tentativa constante de criminalização dos movimentos sociais de organização coletiva para acesso à terra, a aquisição do domínio definitivo de lotes de assentamentos rurais tem sido utilizado como forma de retirada da responsabilidade do poder público pela continuidade da, ainda que precárias, ações de incentivo aos assentamentos.
Esta situação empurra as assentadas e os assentados da reforma agrária para a impossibilidade de continuarem na terra, por falta das condições de produzir. O que demanda a necessidade de políticas públicas, além de oferecer os equipamentos necessários a produção do bem estar no campo; o que evitará a tendência de retorno de assentadas e assentados ao já saturado meio urbano, desfazendo-se da terra conquistada pelo suor, luta e esforço coletivo, em decorrência da correspondência de política agrícola em consonância com a distribuição da terra como forma de garantia do direito à dignidade dos que vivem no campo.
5. REFERÊNCIAS
AGÊNCIA BRASIL. MST defende que CPI é ataque ao movimento e ao governo. Disponível em <https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-04/mst-defende-que-cpi-e-ataque-ao-movimento-e-ao-governo>. Publicação de 29/04/2023. Acesso em 01 Jun. 2023.
BRASIL (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 31 Mai. 2023.
BRASIL (1993). Lei 8.629, de 25 de fevereiro de 1993. Dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8629.htm>. Acesso em 31 Mai. 2023.
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA (CPT). Sobre nós: histórico. Disponível em <https://www.cptnacional.org.br/sobre-nos/historico>. Publicação 05 de fevereiro 2010. Acesso em 01 Mai. 2023.
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA (CPT). Sobre nós: CPT pelo Brasil. Disponível em <https://www.cptnacional.org.br/sobre-nos/historico>. Publicação 26 de maio 2016. Acesso em 01 Mai. 2023.
FIRMIANO, Frederico Daia e ASSUNÇÃO, Matheus. Atualidade da reforma agrária. Disponível em <https://jacobin.com.br/2021/06/a-atualidade-da-reforma-agraria/>. Acesso em 20 Mai. 2023.
FRENTE NACIONAL DE LUTA CAMPO E CIDADE (FNL). Quem somos. Disponível em <https://www.frentenacionaldeluta.org/sobre-2>. Acesso em 01 Jun. 2023.
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES SEM TERRA (MST). Nossa história. Disponível em <https://mst.org.br/nossa-historia/inicio/>. Acesso em 01 Jun. 2023.
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES SEM TERRA (MST). Quem somos. Disponível em <https://mst.org.br/quem-somos/>. Acesso em 01 Jun. 2023.
MUNDO EDUCAÇÃO. Capitanias hereditárias. Disponível em <https://mundoeducacao.uol.com.br/historiadobrasil/capitanias-hereditarias.htm#:~:text=As%20capitanias%20heredit%C3%A1rias%20foram%20a,heredit%C3%A1rias%20como%20mecanismo%20de%20coloniza%C3%A7%C3%A3o.>. Acesso em 31 Mai. 2023.
SALLA, Arieli Tamara; FREITAS, Matheus Viela. Movimentos sociais: um estudo sobre o Movimento Terra, Trabalho e Liberdade (MTL). Publicação: V Semana de História do Pontal. IV Encontro de Ensino de História: 26 a 29 de setembro de 2017. Disponível em <https://eventos.ufu.br/sites/eventos.ufu.br/files/documentos/arielitamarasallamatheusvilelafreitas_0.pdf>. Acesso em 12 Mai. 2023.SOUSA, Reiner. As sesmarias. Disponível em <https://mundoeducacao.uol.com.br/historiadobrasil/as-sesmarias.htm>. Acesso em 31 Mai. 2023.
WESTIN, Ricardo. Há 170 anos, leis de terras oficializou opção do Brasil pelo latifúndio. Disponível em <https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/ha-170-anos-lei-de-terras-desprezou-camponeses-e-oficializou-apoio-do-brasil-aos-latifundios#:~:text=Em%2018%20de%20setembro%20de,e%20n%C3%A3o%20em%20pequenas%20propriedades.>. Publicação de 14/09/2020. Acesso em 31 Mai. 2023.
[1] Manoel Cipriano Oliveira é Mestre em Educação, com Bacharelado e Especialização em Direito, Bacharelado e Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU. Professor Universitário aposentado, foi Defensor Público em Minas Gerais e Servidor do Tribunal Regional da Primeira Região – TRF1. Autor de obras didáticas, poéticas e romances, dentre as quais Noções básicas de filosofia do direito: Iglu Editora, 2001 e Vida de retirante: do arame farpado à favela, a trajetória de uma família, 2001. Jogador de futebol: você já sonhou ser um: Autografia,201; e Amor e existência, um canto à vida, Mepe, 2021. [2] BRASIL, 1988, arts. 184-191. [3] BRASIL, 1993. [4] SOUSA, 2023. [5] WESTIN, 2020. [6] WESTIN, 2020. [7] CPT, 2010. [8]MST, Nossa história. [9] FNL), Quem somos. [10] SALLA & FREITAS, 2017. [11] AGÊNCIA BRASIL, 2023.
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