Manoel Cipriano[1]
06/06/2023
SUMÁRIO: 1. Delimitação. 2. Conceito e aspectos evangélicos. 3. Debate ao longo do tempo. 4. Consubstanciação, transmutação e transubstanciação. 5. Referências.
1. DELIMITAÇÃO
Por transubstanciação compreende-se a transformação de uma para outra substância, ou seja, aquilo que faz com que uma determinada matéria deixe de ter a sua natureza e passe a ser outra natureza, perdendo, assim, a essência do seu ser anterior.
No âmbito religioso e na perspectiva do cristianismo, de modo particular a vertente católica, a transformação se dá pela transformação do pão e do vinho em corpo e sangue de cristo pela imposição das mãos do sacerdote durante a celebração eucarística. Um debate nascido a partir da última ceia, quando Jesus abençoa o pão e o cálice e o reparte com seus discípulos expressando tratar-se do seu corpo e do seu sangue, percorre o curso do tempo e ainda permanece desafiando a razão como realidade da fé cristã.
2. CONCEITO E ASPECTOS EVANGÉLICOS
A palavra “transubstanciação”, em sua origem latina, vem da junção do termo “trans”, que significa além, com o vocábulo “substantia” que quer dizer substância, significando, então, além da substância.
Em grego, esta palavra vem de “ousia”, expressando aquilo que faz com que uma coisa seja ela mesma e não outra. Ou seja, aquilo que, subtraídas todas as características, a exemplo de espessura, cheiro, sabor, cor, continua presente como identidade do ser; ou ainda aquilo que uma coisa é em sua manifestação invisível ou não perceptível, escapando aos domínios dos sentidos e sem possibilidade de demonstração de sua existência.
Na tradição cristã, contudo, a transubstanciação expressa a transformação do pão e do vinho no corpo e sangue de Cristo. Este significado remete ao momento em que Jesus, em sua última ceia, toma o pão e o reparte com os apóstolos, conforme transmitido pelos evangelhos, como expressa o Evangelista Mateus:
Enquanto comiam, Jesus tomou o pão e, tendo-o abençoado, partindo-o e, distribuindo-o aos discípulos, disse: “Tomai e comei, isto é o meu corpo/’. Depois, tomou um cálice e, dando graças, deu-o a eles, dizendo: “Bebei dele todos pois isto é o meu sangue, o sangue da Nova Aliança, que é derramado por muitos e para remissão dos pecados. [...].[2]
Também se encontram no Evangelista Marcos:
Enquanto comia, ele tomou o pão, abençoou, partiu-o e lhes deu, dizendo: “tomais, isto é o meu corpo”. Depois, tomou um cálice, rendeu graças, deu a eles e todos dele beberam E disse-lhes: “Isto é o meu sangue, o sangue da Aliança que é derramado em favor de muitos.[3]
E também está presente no Evangelista Lucas:
E tomou o pão, deu graças, partiu e deu a eles dizendo: Então, tomando uma taça, deu graças e disse: “Isto é o meu corpo que é dado por vós. Fazei isto em minha memória”. E, depois de comer, fez o mesmo com a taça, dizendo: “Esta taça é a Nova Aliança em meu sangue que é derramado por vós[4].
Com pouca diferença textual, a narrativa dos evangelhos sinóticos, como assim passaram à tradição, os Evangelistas Mateus, Marcos e Lucas, trazem as palavras de Jesus que se dá como alimento em sua última ceia na forma de pão de vinho.
O Evangelista João, porém, apresenta Jesus se dando a comer, enquanto carne e sangue, como forma de vida eterna, assim se expressando:
“Em verdade, em verdade eu vos digo, se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tendes a vida em vós. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele. Assim como o Pai, que vive, me enviou e eu vivo pelo Pai, também aquele que de mim se alimenta viverá por mim. Este é o pão que desceu do céu, Ele não é como o que os pais de vocês comeram e pereceram; quem come este pão viverá eternamente.[5]
Tem-se, assim, nas narrativas evangélicas, os fundamentos teológicos da transubstanciação que se faz a partir da própria afirmação de Jesus que apresenta o seu corpo e sangue como realidade na forma do pão e do vinho abençoados e repartidos entre os seus discípulos, assim como condição para a vida eterna.
3. DEBATE AO LONGO DO TEMPO
Ainda no momento imediatamente posterior a Jesus, Santo Inácio de Antioquia, em suas discussões contra os docetas gnósticos, em sua Carta aos Esmirnenses, assegura que a transubstanciação do pão e do vinho em corpo e sangue de cristo é uma realidade em essência, sendo esta a razão da fé cristã.[6]
São Cirilo (375/378-444 d.C.)[7], de Jerusalém, afirma a eucaristia como realidade do corpo e sangue de Cristo na forma de pão e de vinho, um mistério da fé cristã. O Quarto Concílio de Latrão, ocorrido em 1215, se debruçou sobre esta questão e afirma que verdadeiramente o pão e o vinho se transformam no corpo de sangue de Jesus, resultando do poder de Deus.
"Seu corpo e sangue estão verdadeiramente contidos no sacramento do altar sob as formas de pão e vinho, o pão e o vinho tendo sido transubstanciados, pelo poder de Deus, em seu corpo e sangue”.[8]
Seguindo esta mesma linha, o Concílio de Trento, ocorrido entre 1545 a 1563, reafirma a transubstanciação, como realidade decorrente da transformação do pão e do vinho no corpo e no sangue de Jesus, afirmando a consubstanciação, ou seja corpo e sangue de um mesmo ser.
[..] pela consagração do pão e do vinho opera-se a conversão de toda a substância do pão na substância do Corpo de Cristo Nosso Senhor, e de toda a substância do vinho na substância do Seu Sangue; a esta mudança, a Igreja Católica chama, de modo conveniente e apropriado, Transubstanciação.[9]
O que foi afirmado também por Paulo VI (1897 – 1978) que, por sua vez, assegura que
[..] toda a explicação teológica que queira penetrar de algum modo neste mistério, para estar de acordo com a fé católica deve assegurar que na sua realidade objetiva, independentemente do nosso entendimento, o pão e o vinho deixaram de existir depois da consagração, de modo que a partir desse momento são o Corpo e o Sangue adoráveis do Senhor Jesus que estão realmente presentes diante de nós sob as espécies sacramentais do pão e do vinho.[10]
Conforme o Catecismo da igreja católica, trata-se de uma transformação que vem da imposição das mãos do sacerdote que, neste instante, entrega o seu ser para que se transforme no ser de Cristo, realizando a transubstanciação do vinho e do pão em corpo e sangue de um mesmo ser.
É uma só e mesma vítima e Aquele que agora Se oferece pelo ministério dos sacerdotes é o mesmo que outrora Se ofereceu a Si mesmo na cruz; só a maneira de oferecer é que é diferente. E porque neste divino sacrifício, que se realiza na missa, aquele mesmo Cristo, que a Si mesmo Se ofereceu outrora de modo cruento sobre o altar da cruz, agora está contido e é imolado de modo incruento […], este sacrifício é verdadeiramente propiciatório.[11]
Neste sentido, a Igreja afirma que, embora os acidentes constituintes do pão e do vinho, a exemplo da cor, do cheiro, da espessura, permaneçam pela transubstanciação, já não são mais nem pão nem vinho e sim o corpo e o sangue de Jesus.
Esta expressão de fé teve alguns milagres a ela destinados, sendo os mais conhecidos Milagre Eucarístico de Lanciano (Século VII), na Itália, que passou para a história deste debate a transformação da hóstia e do vinho em carne e sangue humano durante a celebração eucarística. Há, ainda, o Milagre Eucarístico de Santarém (Século XII), em Portugal que, segundo consta, de uma hóstia desviada da igreja por uma em conflito com a vida conjugal, para ser levada à um sessão de bruxaria, passou a jorrar sangue e, em plena noite, refletiu raios resplandecentes na residência do casal O que reforça, ainda mais, a certeza cristã na transubstanciação como o ser de cristo em essência na forma de pão e de vinho.
4. CONSUBSTANCIAÇÃO, TRANSMUTAÇÃO E TRANSUBSTANCIAÇÃO
Em regra, luteranos, assim como o protestantismo de um modo geral, nega a transubstanciação, salvo a ala Anglo-Católica, da Igreja Anglicana, que acredita nesta verdade da fé cristã. Os calvinistas, por sua vez, sustentam a consubstanciação, permanecendo assim a substância do pão e do vinho em conjunto com a presença do corpo e sangue de Cristo. No entanto, os calvinistas-católicos, contudo, mantêm-se na afirmação da transubstanciação.
Já, para a igreja cristã ortodoxa, afirma que, pela imposição das mãos, ocorre a transmutação do pão e do vinho; o que nomina de epiclese, evocação do Espírito Santo sobre as oferendas, momento que ocorre a mudança do pão e do vinho em corpo e sangue de Cristo.
No entanto, a transubstanciação tem sido afirmada e sustentada pela Igreja ao longo do tempo, sustentando a transformação da substância do pão e do vinho no corpo e sangue de Jesus, deixando de existir o pão e o vinho a partir da consagração sacerdotal pela imposição de suas mãos durante a celebração eucarística.
Neste sentido, o debate atravessa o curso do tempo e permanece como um desafio à razão das coisas, sendo, portanto, uma questão integrante da fé cristã. O que é celebrado, de modo singular, pela vertente católica, uma religião ainda com protagonismo na sociedade brasileira. O que se manifesta pelo país afora durante as celebrações Dia de Corpus Christis, mobilizando, assim, a comunidade católica para a celebração desta realidade da fé.
5. REFERÊNCIAS
PAULUS. Bíblia de Jerusalém. Evangelho de Mateus. São Paulo, 2002.
PAULUS. Bíblia de Jerusalém. Evangelho de Marcos. São Paulo, 2002.
PAULUS. Bíblia de Jerusalém. Evangelho de Lucas. São Paulo, 2002.
PAULUS. Bíblia de Jerusalém. Evangelho de João. São Paulo, 2002.
WIKIPEDIA, a Biblioteca livre. Concílio de Trento. Disponível em <https://www.google.com/search?q=Conc%C3%ADlio+de+Trento&oq=Conc%C3%ADlio+de+Trento&gs_lcrp=EgZjaHJvbWUyBggAEEUYOTIHCAEQABiABDIHCAIQABiABDIHCAMQABiABDIHCAQQABiABDIHCAUQABiABDIHCAYQABiABDIHCAcQABiABDIHCAgQABiABDIHCAkQABiABNIBDjU1OTk1MjMwMGowajE1qAIAsAIA&sourceid=chrome&ie=UTF-8> . Aceso em 06 Jun. 2023.
WIKIPEDIA, a Biblioteca livre. Epiclese. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Epiclese>. Aceso em 06 Jun. 2023.
WIKIPEDIA, a Biblioteca livre. Epístola aos esmirniotas. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ep%C3%ADstola_aos_Esmirniotas>. Aceso em 06 Jun. 2023.
WIKIPEDIA, a Biblioteca livre. Inácio de Antioquia. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ep%C3%ADstola_aos_Esmirniotas>. Aceso em 06 Jun. 2023.
WIKIPEDIA, a Biblioteca livre. Milagre eucarístico de Lanciano. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Milagre_eucar%C3%ADstico_de_Lanciano>. Aceso em 06 Jun. 2023.
WIKIPEDIA, a Biblioteca livre. Milagre eucarístico de Santarém. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Milagre_eucar%C3%ADstico_de_Santar%C3%A9m>. Aceso em 06 Jun. 2023.
WIKIPEDIA, a Biblioteca livre. Paulo VI. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Papa_Paulo_VI>. Aceso em 01 Jun. 2023.
WIKIPEDIA, a Biblioteca livre. Quarto Concílio de Latrão. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Quarto_Conc%C3%ADlio_de_Latr%C3%A3o>. Aceso em 06 Jun. 2023.
WIKIPEDIA, a Biblioteca livre. Transubstanciação. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Transubstancia%C3%A7%C3%A3o>. Aceso em 01 Jun. 2023.
VATICANO. Catecismo da Igreja Católica. Disponível em <https://www.vatican.va/archive/cathechism_po/index_new/prima-pagina-cic_po.html>. Acesso 06 de Jun. 2023.
[1] Manoel Cipriano Oliveira é Mestre em Educação, com Bacharelado e Especialização em Direito, Bacharelado e Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU. Professor Universitário aposentado, foi Defensor Público em Minas Gerais e Servidor do Tribunal Regional da Primeira Região – TRF1. Autor de obras didáticas, poéticas e romances, dentre as quais Noções básicas de filosofia do direito: Iglu Editora, 2001 e Vida de retirante: do arame farpado à favela, a trajetória de uma família, 2001. Jogador de futebol: você já sonhou ser um: Autografia,201; e Amor e existência, um canto à vida, Mepe, 2021. [2] MT, 26, 26-28. [3] MC, 14, 22-25. [4] LC, 22:19,20 [5] João, 6 53-58. [6] WIKIPÉDIA, 2023, Inácio de Antioquia. [7] WIKIPÉDIA, 2023, Cirilo de Alexandria. [8] WIKIPÉDIA, 2023, Transubstanciação. [9] WIKIPÉDIA, 2023. Transubstanciação. [10] WIKIPÉDIA, 2023, Transubstanciação. [11] VATICANO. Catecismo, § 1376. [12] WIKIPÉDIA, 2023, Transubstanciação.
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