Um romance com reflexão política que retrata o processo imigratório do êxodo no rural.
Vida de retirante: do arame farpado à favela e a trajetória de uma família
As raízes do brasileiro, do povo nordestino em particular e, em síntese, do próprio homem, estão na terra. Pois é da terra que se tira o alimento que é posto à mesa a cada dia. Da terra brota a água que bebemos, advém a matéria prima para a roupa que vestimos, para construir a casa em que moramos, para fabricar o carro em que andamos, asfaltar as ruas e as estradas por onde caminhamos; é da terra que se tira toda a riqueza da vida, enfim.
Eis por que expulsar uma família do pedaço de chão em que se encontra é, sem a menor dúvida, tirar-lhe a própria vida; expressa um ato de quem não tem senso de humanidade. Esta ação é ainda mais grave, quando feita com o auxílio de uma estrutura de poder organizado num sistema social e político. Quando se dá sob o manto de um falso discurso e sob a propaganda de que é feito em nome do progresso. Seja pela conduta de uma só pessoa, seja pela ação de um grupo de indivíduos, isso revela, de certa forma, um arroubo contra a dignidade humana.
No Brasil, o processo migratório do campo para a cidade se fez, e ainda se faz, por todo o território nacional, como resultado de atos de coronéis, grileiros e latifundiários pelos campos do país afora. O reflexo desse processo desembocou na expulsão de uma massa de lavradores, homens, mulheres e crianças do campo para a cidade. Resultou na transformação de um país de população agrária para uma sociedade quase que inteiramente urbana.
A industrialização do país e a modernização no campo levaram a população rural a migrar de um lado a outro e por todos os cantos e recantos desta terra que se chama Brasil. O que se transformou num fenômeno que se estende pela costa e pelo interior do território nacional. Isto se fez realidade no norte, sul, nordeste, centro-oeste e sudeste brasileiros.
No campo, grileiros surrupiaram, mataram e expulsaram famílias e mais famílias. Povoados inteiros foram massacrados e queimados pelas mãos de jagunços a serviço do grande latifúndio. Nas cidades, fervilharam as ocupações urbanas; favelas foram, e ainda são, construídas, destruídas e reconstruídas até serem reconhecidas como parte da cidade. Fenômeno que levou o homem do campo a viver jogado em terras alheias. No abandono da vida, distante do lugar onde nascera, este povo errante perdeu o laço com os costumes da terra; perdeu o contato com as próprias raízes; além do que transmite, hoje, essa situação à geração do amanhã: um horizonte sem identidade cultural e, quem sabe, um futuro de incertezas existenciais.
O enredo, contado no presente trabalho, reflete sobre os acontecimentos do dia a dia de uma família do meio rural na caminhada percorrida do campo até a cidade. No princípio, esta família vivia em plena harmonia com a natureza, num lugarejo encravado no meio da floresta. Ali os habitantes tiravam da terra tudo o que precisavam para a subsistência. Ninguém possuía a propriedade da terra. Até que, após invasão de grileiros, todo mundo é despejado daquele lugar. Expulsa da terra a família, então, vai se embora. Como migrante, peregrina de cidade em cidade até chegar à capital do Estado.
Jorge, responsável pela família, assume o personagem principal dessa caminhada. Desde jovem, ele reflete as marcas da violência que se manifesta nos acontecimentos históricos de ocupação do campo pelas grandes plantações, pela instalação de grandes fazendas, pelo domínio político, pelo assédio religioso, pela conivência social e pelo poder econômico. Sua trajetória encarna e traduz os acontecimentos que transformam trabalhadores rurais numa massa de desempregados no meio urbano, fruto do crescimento desordenado das cidades. Encarna a vida agreste em que a marca é a agricultura de subsistência. Ali onde a cada ano se plantava o suficiente para a vida da família, sem a menor preocupação em acumular riqueza. De repente, essa vida bucólica e ingênua é substituída pela labuta da vida na cidade. Um lugar onde passa a sentir a escassez de tudo e onde tudo é trocado por dinheiro. E dinheiro é coisa que ele não tem.
A trama se passa nos caminhos do interior maranhense. Parte do território nacional conhecido pela abundância do coco babaçu, pelas manifestações do bumba-meu-boi, do tambor-de-criola, dos cantores de embolada, dos violeiros, dos repentistas, pela praia dos lençóis, pelos versos de Gonçalves Dias, pelos poemas do Ferreira Goulart e pelos líderes políticos que se destacaram no cenário nacional. Uma região também deveria ser conhecida pelos conflitos acirrados que assolaram o meio rural. Contudo, pouco ou quase nada se conhece da história de vida do lavrador, dos posseiros e de homens, mulheres, índios, do povo sofrido e lutador daquela terra, enfim.
Vida de retirante: do arame farpado à favela, a trajetória de uma família, obra ora apresentada, possui muito da experiência de vida do Autor e da caminhada deste e de sua família pelas estradas desta vida. Um trabalho que revela nada mais nada menos do que uma forma de materializar, em prosa, a realidade de milhares de famílias de migrantes que se vão pelos quatro cantos do Brasil.
No presente trabalho, o leitor lançará o olhar sobre o conflito diuturno que levou, e ainda leva, o povo brasileiro a migrar do campo para a cidade em busca de dias melhores. Na trajetória do campo para a cidade, o enredo procura mostrar e expressar a situação gerada pelo êxodo rural feito pelos esquecidos que vivem o dia a dia na cidade, privados de um bocado para comer, sem um lugar para morar, sem saber o que é cidadania e dignidade humana. Cada personagem fala sobre a situação de luta pela sobrevivência. Assim como tenta traduzir a paixão e o amor do homem pela vida. Trata-se de um trabalho que reflete as transformações dos últimos tempos na sociedade brasileira e no mundo, bem como sobre o drama de cada pessoa inserida nestas transformações. O que dá à obra um caráter singular e ao mesmo tempo detentora de um enfoque universal inerente ao fenômeno migratório, cujo processo continua ocorrendo nos dias atuais.
Espera o Autor que esse trabalho seja recebido como o grito de uma família nordestina e que esse grito chegue aos ouvidos, em especial, daqueles que, como autoridades, praticam ou são coniventes com os atos de atrocidades para com o povo daquela região brasileira e para com os pobres deste país. E, com isso, passem a pensar um pouco mais no que prometem. Comecem a praticar o que professam nos discursos de palanques políticos, diante dos holofotes da mídia nacional e até mesmo nos púlpitos religiosos das igrejas e das catedrais. Pois pode-se afirma que uma coisa é certa: o sertanejo não quer aquilo que não lhe pertence; o homem da roça aspira que seus filhos não continuem migrando do campo pra cidade para morrer nas periferias dos centros urbanos; aspira e deseja voltar a viver junto ao mandacaru da caatinga, no pulmão verde amazônico, às margens ribeirinhas, o seu habitat natural; quer apenas uma chance para mostrar que é capaz de conduzir-se a si mesmo. Seu desejo maior é ser ouvido sobre aquilo que deve ser feito para que lhe seja dado o direito e a alegria de uma existência com dignidade.
Vida de retirante: do arame farpado à favela, a trajetória de uma família não é uma obra completa e acabada. Nem essa seria nem deveria ser a intenção dela. Pois o que é dito aqui traduz apenas uma pequena parte, uma centelha, do que vivem as famílias de migrantes pelo Brasil afora e os brasileiros pelos quatro cantos do mundo. Por ser uma obra simples, como é simples o próprio Autor, o objetivo deste trabalho é suscitar uma reflexão sobre a realidade que se impôs no dia a dia de homens, mulheres, famílias e grupos que tiveram que deixar a roça, lugar onde nasceram, cresceram, criaram e construíram raízes e se foram morar nos guetos, bairros, mocambos, becos e favelas, perdendo a identidade pessoal, cultural, política e o sentido da própria existência como pessoas na sua individualidade e na manifestação coletiva da vida, por lhes faltar um trabalho que lhes preserve a cidadania e a dignidade humana. Esse é, pois, o traço que caracteriza a universalidade da presente obra. Pois a transformação social produzida pelo êxodo rural é também a realidade do homem latino-americano, do africano, do asiático, do europeu. Aliás, dir-se-ia que a urbanização é, atualmente, uma situação global em que o migrar parece ser a situação de muitos por esse mundão afora.
Uberlândia, agosto de 2019.
M. Cipriano.